Fragmentos - Pai

O meu pai em 4 fases

Época em que ele é o nosso grande herói. Essa é a fase admiração. Mesmo que ele não seja tão presente nós ficamos loucos para estar com ele (mesmo que seja pra levar uma bronca). Com o meu foi assim. Eu parecia um cachorro sem dono. Chegava a apanhar mas, mesmo assim, o queria sempre mais. O domingo era o dia especial. Todos os domingos eram "dia do pai". A gente ia com ele comprar uma galinha viva e um jornal. Engraçado... ele era semianalfabeto mas, comprava o jornal de domingo e lia ele "todinho". Bem se diz que a educação antiga era muito melhor (?). Nessa época eu e os meus irmãos disputávamos a melhor posição para ver quem ficava mais perto do pai nesse momento diminical. Era uma coisa rápida que levava não mais que 30 minutos... pra mim, horas.
De repente a gente "adolesce" - momento em que pensa que cresceu - o que em termos de medida pode ser verdadeiro. Comigo foi. É então a fase ódio. Eu me lembro que ficava olhando aquele trabalhador braçal que me levava com ele pra comprar galinha e jornal e entrava em depressão. Procurava encontrar ali o pai de outrora e não percebia que a mudança estava em mim agora. É quando o pai de qualquer amigo é sempre melhor que o nosso. É quando todos os esforços dele nem chegam aos pés dos de qualquer outro. É quando a gente não tem pra quem falar que "bateu" uma "punheta" que beijou na boca ou até mesmo que conheceu uma "buceta".
E continuando nesse processo a gente "se adianta" mais uns anos, estuda mais um pouco, frequenta uma religião e pensa que é crítico. Esta então é a fase contestação. Temos uma resposta prática pra quase tudo ignorando totalmente os anos de vida desse pai, a luta que ele empreendeu por nós e nos esquecemos (já que somos tão práticos) de que as pessoas não são iguais e que o mesmo acontece com as oportunidades. Esquecemos de que o nosso pai fez por nós aquilo que estava dentro de sua capacidade e conhecimento. Nossa praticidade elimina a atitude dele de ler o jornal de domingo com a qual absorveu algum conhecimento. O mesmo acontece com àquela galinha que nos alimentou... "Agora eu já trabalho, foda-se a galinha de domingo".
E como em filmes e novelas o relógio gira rapidamente e a gente se vê na condição de pai. A gente passa por situações idênticas ou parecidas com as que "vitimamos" nossos pais e finalmente entramos na fase arrependimento. Tentamos manter nosso ego ignóbil diferenciado do dele, mas sempre recorremos ao que com ele aprendemos. Seja numa bronca, num corretivo, numa conversa... Percebemos nisso o DNA da razão. Aquilo que você contestou agora é pura lição. O ódio que sentiu agora lhe pode ser retribuição. É bem nessa hora que você pensa na fase admiração, no herói, no semianalfabeto que comprava galinha viva e jornal. E sabe de uma coisa? Foda-se você!
Eu ali sozinho ao lado do caixão com o corpo do meu herói mudo. Perguntei como era que ele tinha tido coragem de morrer e me deixar aqui assim, sem pai mas, percebi de imediato que todo herói é corajoso. Acho que foi por isso ele morreu. Me desculpei por tudo de errado que fiz - do que me lembrei - e ele nada. Pensei no que mais eu poderia ter aprendido pra ensinar pro meu filho e percebi que aproveitei muito pouco do meu pai. Foi assim comigo.

31/07/10.